ENTREVISTA DAVIDE LUPIDI
Notamos que nos últimos dias, nossas páginas de entrevistas tem sido as mais acessadas do blog. Natural, que em um país grande como o Brasil, os diversos grupos e praticantes acabem ficando espalhados sem tomarem ciência da existência uns dos outros, por esse motivo, nada melhor do que aproveitar esse espaço comum para que cada um possa compartilhar um pouco sobre a sua experiência no FMA com os demais. Hoje, conversaremos um pouco com um legítimo filho da península itálica, porém de alma brasileira, que irá nos contar um pouco da sua experiência com o FMA: Guro Davide Lupidi!
Olá Guro Davide! Muito obrigado por participar do nosso blog. Gostaria que você começasse se apresentando para os nossos leitores e contando sobre o seu início com as artes marciais.
Salve! Obrigado por dedicar este espaço ao nosso trabalho. Bom, meu começo com as artes marciais foi bem variado, pois experimentei tudo o que era possível de se achar nas academias, desde que eu era adolescente. Naquela época, eram os anos 90, a criançada crescia vendo filmes de Van Damme e eu então, comecei a treinar um pouco de boxe e muay thai, e nos anos seguintes Wing Chun com um amigo meu, Giacomo De Angelis, que é fanático pela cultura chinesa (hoje em dia mora em Pequim onde, após ter estudado línguas orientais, se tornou tradutor de madarim). Experimentava um pouco de tudo, mas nunca achava a coisa que me interessava que eu julgasse completa. Não queria algo que tivesse a ver com esporte, pois não era o que eu procurava.
E o seu contato com o FMA - Kali Arnis? Como foi?
Conheci as artes marciais filipinas (Kali) e da Indonésia - Malásia (Silat) por causa do meu melhor amigo, Renato Lucandri, que tinha se graduado como instrutor (e com quem hoje em dia faço vários trabalhos em parceria). Treinei inicialmente Silat, e depois Kali, com ele. Foi em 2002 quando me interessei. Em seguida, no ano de 2004, eu parti para o Brasil para uma pesquisa de faculdade, pois na época eu estava me graduando em língua portuguesa. No Rio de Janeiro conheci o mestre Paulo Albuquerque e foi pela escola dele que me formei instrutor de Kali e de Kombato (o sistema criado por ele). Para isso precisei de mais duas viagens ao Brasil e muitos meses totais de treino intensivo, o que posso dizer que foi massacrante, sem exagero. Valeu muito a pena, pois quando se luta dessa forma pra alcançar um objetivo, se viaja em outros continentes com uma motivação específica e se tem sucesso, a satisfação que deriva fica pra sempre. A partir de 2006, também fui treinar com o Mestre Maltese em muitos cursos sobre Kali e Silat, e me formei como instrutor de Esgrima de Faca de Tradição Italiana.
Você hoje comanda o Kali Silat Italia junto com o Guro Renato. Como foi que vocês se conheceram e qual foi a motivação de vocês em iniciar esse projeto?
Conheci o Guru Renato por motivos que não tem nada a ver com o Kali. Eu e ele nos conhecemos no ano de 1993, e durante um tempo treinamos Capoeira juntos. Na nossa cidade existia a primeira escolinha de capoeira da Itália e ninguém nem sabia o que era. Um brasileiro tinha ficado ali pra ensinar desde 1982. Nós dois chegamos a nos tornar instrutores de Capoeira, sendo que o Renato primeiro, pois ele é um pouco mais velho. Depois que concluimos nossa experiência com a capoeira, continuamos a treinar juntos no Kali e todo o resto, participando de cursos com o Mestre Maltese e fazendo vários trabalhos na área de segurança por vários anos. Decidimos então nos dedicar à divulgação do Kali e das artes marciais de tradição ocidental que nos interessa muito.
Você hoje possui alunos em diversos cantos do mundo, certo? Como é isso?Como é essa sensação de encontrar alunos tão distintos?
É muito interessante poder se relacionar com pessoas de outros países, tanto pelas distintas personalidades e culturas quanto pelas diferentes necessidades e possibilidades que eles tem no próprio pais de origem ao divulgar o Kali, caso o queiram fazer. Desde 2007 estou cuidando de alguns alunos de Portugal, militares, que querem fundar uma escola em Lisboa. Já tive alunos americanos que treinaram na Itália, tendo na minha cidade escolas de intercâmbio com os EUA. No Rio de Janeiro, além de treinar para meu aperfeiçoamento com o mestre Paulo, tive a oportunidade de dar aula de várias coisas, sobretudo Silat indonesiano e Esgrima de Adaga Italiana e tenho a maior satisfação em ver crescer alunos e ver progressos cada vez que volto no Brasil. É ótimo os laços de amizade e respeito que se criam trabalhando juntos.
Na sua visão, o que difere mais dos praticantes de Kali do Brasil para os da Itália?
Os praticantes são diferentes individualmente, e isso não depende muito da nacionalidade. Tem pessoas que treinam por passatempo, porque acham a prática interessante ou divertida, mas não tem nenhuma intenção de ensinar ou de serem instrutores ou ainda, de participar de lutas e combates. Outros vêem a arte marcial como um desafio, onde a vontade de confrontar e lutar são tudo o que prevalece, mais do que a própria técnica adquirida pra isso. Tem gente que quer as duas coisas, de forma mais ou menos equilibrada e tem gente que olha as artes marciais como uma prática física e que caso seja necessário, pode ajudar em sentido de defesa pessoal, sendo esse um assunto delicado e que deve ser tratado separadamente.
Sua opinião sobre a relação entre Artes Marciais x Defesa Pessoal.
A diferença está no fato que, no caso da arte marcial, é você aluno que deve se conformar e alcançar capacidades particulares, físicas e psíquicas, para se adaptar ao que aquela técnica esta pedindo como padrão. Na defesa pessoal, é a técnica que deve se adaptar ao aluno, no tempo menor possível, para que ele, sem ser um atleta, e com as capacidades físicas e psíquicas que possui, possa se defender na melhor forma possível. Outra diferença fundamental está no ambiente a ser considerado, pois uma arte marcial geralmente cuida somente da área do combate físico (que na verdade seria a ultima etapa, e so quando inevitavel, em defesa pessoal), e de forma que podemos definir "antiga". Na defesa pessoal se deve considerar um ambiente moderno, com armas de fogo, e, sobretudo a psicologia que faz enfrentar as situações de perigo e sempre com tendencia a evitá-las. Negociações, avaliações dos riscos e dicas úteis, noções e tudo que serve para tentar evitar o mais possível o confronto físico, ou lidar com isso quando nao se pode fugi-lo, numa ótica de sobrevivência realística e pratica, simplificada ao maximo. Na defesa pessoal deve-se também levar em conta a lei do país em que se vive. Na rua, num ambiente moderno, onde existem regras sociais e legislaçao, não é aconselhável cortar fora com uma espada a cabeça do "inimigo" sem pensar duas vezes, como um artista marcial adoraria fazer (risos).
Apesar das diferenças, você consegue ver que haja hoje um público específico para o FMA?
O público específico das artes marciais em geral, hoje, è sempre do mesmo tipo. Tem quem procura arte marcial 'esportiva' onde possa competir em torneios. Tem quem pratica por diversão ou por achar interessante pelo bem estar e como pratica física em opção a outro tipo de treino ou ginástica. Há também aqueles que enxergam as artes marciais como algo de 'místico e filosófico', o que não é a minha praia, pois se fosse pra isso procurava uma religião ou sociedade filosófica. Para ser sincero nunca vi, em toda minha vida, um soco filosófico ou um chute no saco dado misticamente. As artes marciais filipinas possuem a ótima característica da variedade, isso é, de abranger todas as áreas do combate, a partir do uso de todo o tipo de armas brancas, até o combate desarmado contra alguém armado, passando pela luta corpo a corpo etc. As técnicas se baseiam todas em princípios simples, que não mudam mas que somente se adaptam às possibilidades do aluno, para que este possa fazer paralelos e assim aprender mais rápido certos princípios que de outra forma demorariam muito, se tratadas separadamente como assuntos fechados e não relacionados um ao outro. Essa didática é inteligente. Podemos incluir a possibilidade de organizar torneios desportivos segundo determinados regulamentos e com as devidas proteções, o que faz com que o FMA seja algo muito interessante para o público geral. Fora isso, as artes marciais filipinas estão entre as artes mais práticas e funcionais do planeta, comprovadamente eficientes e utilizadas pelas forças armadas de muitos países.
Você é graduado em mais de uma escola de FMA, correto? Em quais?
Falando de artes marciais indonesianas, pratiquei muito o estilo Cidepok Pencak Silat, com o Guru Renato. Falando de Kali, treinei com o Mestre Maltese em vários cursos de formação, sobretudo sobre armas pequenas e de corte. Fiz também diversos cursos de combate com faca, sobretudo estilo de tradição italiana, modalidade na qual sou instrutor. No Brasil treinei Kali com o Mestre Paulo Albuquerque e é a escola dele que considero como minha escola principal, pois foi a primeira onde eu me graduei e me formei instrutor certificado. Foi onde fiz grandes amizades e tive diversas experiências construtivas durante as viagens. Foram várias as dificuldades que enfrentei naquela época mas foi com elas que descobri coisas importantes que me servem até hoje como lições de vida. Meu treino e graduação em ambas as escolas continua sempre, seja com o Mestre Paulo ou seja com o Mestre Maltese.
Como você vê essa questão de ser graduado em mais de uma escola. Alguns mestres apóiam. Outros são mais ciumentos e não gostam. Qual sua opinião? Que grandes lições você conseguiu tirar dessa experiência?
Eu creio que se um mestre confia no aluno e o aluno confia no mestre, nunca se tem problemas em nada. Sobretudo nunca se deve esquecer que a função de um mestre é a de dar formação, não de impedi-la. Os alunos tambem devem ter o mesmo respeito e seriedade pelo que praticam, pela escola à qual pertencem e levar em conta as opiniões dos outros, pois o agir deles influencia o nome e a imagem da escola, podendo até prejudicá-la, caso não se preste atenção ao que se diz e faz. Na minha experiência, vi que os melhores mestres não se importam se um aluno treina outras artes em paralelo, ou conhece outro estilo da mesma arte, pois eles sabem o valor do que ensinam e sabem que esse valor não poderá ser diminuído caso o aluno vivencie experiências diferentes. Muitas vezes, com a comparação, um bom mestre ganha pontos, pois o aluno verifica com os próprios olhos a qualidade do treinamento que recebeu, pois aprende a reconhecer mestres ruins quando os encontra. Portanto, os bons mestres não se preocupam muito com o fato de um aluno treinar também em outras escolas. Claro que se um aluno pede opinião ao mestre sobre o que ele pensa de outra escola ou estilo ou outro mestre, ele, o mestre, é livre para falar o que pensa sobre: se gosta ou não, se aconselharia ou não a treinar com o fulano, se acha aquele outro treinador bom ou ruim. Essa é a opinião pessoal de cada mestre, que também é uma pessoa, com opiniões e julgamentos pessoais como qualquer outra pessoa do planeta.
Por fim, muito obrigado pelo papo. Gostaria de deixar alguma mensagem para os nossos leitores?
Sejam os nossos leitores praticantes de artes marciais, admiradores ou candidatos à prática marcial, meu conselho è somente o de refletir a fundo sobre o que realmente é o que cada um procura numa arte marcial. Qual aspecto dela que os atrai? Depois de ter escolhido aquela que melhor atende aos seus anseios, procure um bom mestre que valha a pena. Não venham com o velho papo de que conhecem uma escola legal, mas que não a freqüentam porque è longe, ou por que o horário não bate etc., pois garanto que o tempo e o lugar não são nunca um problema se o desejo for real e sincero. Basta se organizar. Querer é poder! Posso falar isso como alguém que foi treinar quase no lado oposto do mundo, apenas seguindo essa idéia.
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